Quem, como eu, desde
sempre curioso dos saberes da cozinha, entre muitos outros do dia-a-dia do
cidadão comum, acabou por fazer vida entre a comunidade científica, tem matéria
para divagar em torno dos muitos pontos de ligação existentes entre os sabores
da cozinha e os saberes, tidos por eruditos, cultivados por esta comunidade.
Sabores e saberes andam assim de mãos dadas e até porque saber é conhecer mas
também é ter sabor.
No domínio das
ciências humanas, como a história, a geografia, a etnografia, a sociologia, a
pedologia a gricultura e silvicultura, são particularmente evidentes as
profundas ligações entre os respectivos saberes e os sabores próprios dos
hábitos alimentares das populações ao longo dos tempos e nas várias latitudes e
longitudes.
Uma rápida passagem
sobre a multitude dos “cheiros” e “temperos”, das hortaliças, dos cereais e de
tudo o mais que consumimos entre os produtos vegetais, basta para evidenciar a
grande e imediata ligação entre os saberes da botânica e os sabores dos nossos
cozinhados. Poderia começar por evocar Garcia de Orta, contemporâneo das
Descobertas e de Luís de Camões, e falar da sua contribuição na introdução das
ervas aromáticas do oriente na cozinha regional do Alentejo. Grande botânico,
este alentejano de Castelo de Vide é igualmente conhecido entre os
mineralogistas pelas referências às pedras preciosas (gemas) que nos deixou no
seu livro “Colóquio dos Simples e Drogas e Cousas Medicinais da Índia”,
publicado em Goa, em 1563. Dentro desta ciência poderiam os seus cultores
dissertar sobre a fisiologia e a bioquímica do mundo vegetal e das implicações
de toda essa fenomenologia nas sensações que nos atingem o cérebro através da
pituitária e das papilas gustativas. O raminho de hortelã escaldado nas “sopas
da panela” e o aroma que, de imediato, se espalha no ar tem por base essências
elaboradas pela respectiva planta e que são diferentes das dos orégãos, dos
poejos, da hortelã da ribeira, do louro, dos cominhos e do alho de todos os
dias. E a couve do caldo verde, o feijão da feijoada, a alface, o pepino e os
pimentos das saladas, a cebola e o tomate das ceboladas e tomatadas, não são
todos eles produtos do “Reino Vegetal”? E o azeite, o vinho, o pão de milho, de
trigo ou de centeio, não são eles parte desse grande reino?
No que se refere à
zoologia, outro grande domínio do mundo biológico, são igualmente imediatas as
associações que se podem fazer entre a gastronomia e o saber que aqui se
cultiva. Nesta ciência o difícil é seleccionar os exemplos, tantas são as
fantasias alimentares dos habitantes dos quatro cantos do mundo. Das
tradicionais “tripas” à moda do Porto, à expectativa de risco para a saúde face
ao espectro da tão falada encefalopatia espongiforme bovina ou “doença das
vacas loucas”, das perfumadas e gostosas sardinhas na brasa e dos benefícios da
respectiva gordura na regulação do colesterol, à caldeirada comida ali, na
fragata, a meio do Tejo e a saber a maresia, muitos são os pontos de conexão
entre o “Reino Animal” e muito daquilo que comemos.
Aos químicos, também
eles com “muito pano para mangas” numa dissertação deste teor, não faltam
temas. O sal, cujo valor na culinária ficou glorificado no conto da princesa
que, à pergunta que o rei lhe fizera e às irmãs, respondeu “Eu quero tanto ao
meu pai, como a comida quer o sal...”, é cloreto de sódio, um apenas entre os
ácidos, as bases e os sais da ciência, mas também os da poesia de António
Gedeão (ou Rómulo de Carvalho). Os ácidos oleico e acético têm total cabimento
no portuguesíssimo bacalhau cozido ou nas saladas bem temperadas.
Carbo-hidratos, lípidos e prótidos, álcoois e aldeídos, e suas propriedades
organolépticas, isto é, os seus odores e sabores, a sacarose, bem docinha, em
excesso no pacotinho de açúcar e a cafeína que faz a delícia da “bica”, dois
perigos para a saúde, mas também dois prazeres, têm aqui o seu espaço. Todos
estes produtos e muitos mais, e as reacções que possibilitam, fermentação,
hidrólise, oxidação, redução, etc., são a ponta do iceberg da participação dos
saberes da Química na arte de cozinhar.
Os físicos têm,
aparentemente, menos por onde se movimentar e tal acontece apenas porque as
ligações dos seus saberes aos sabores não são tão evidentes. Podem explicar o
aquecer e o arrefecer, condução e convecção térmicas, gelo e degelo, a fervura
e as diferenças entre cozer e assar. Podem discorrer acerca do verde da alface
e das couves, do vermelho do tomate e das beterrabas, do laranja da cenoura ou
do amarelo do limão, outros tantos “sabores” para os olhos, cores estas que
sabem explicar pelo conhecimento que têm da natureza policromática da luz
branca e do modo como os corpos lhe absorvem algumas das suas radiações. Podem,
ainda, a partir da sempre apetitosa “tarte de maçã”, fazer a ponte para a
gravitação universal que Isaac Newton tão bem explicou no séc. XVII, ou ainda
aventar que esta era a sobremesa preferida de Albert Einstein e criar assim
pretexto para falar da obra de uma das figuras mais ilustres da humanidade, não
só como físico, mas também como homem.
No domínio do
conhecimento em que profissionalmente me envolvi, tirando as águas minerais ou
de mesa, não são muitos os temas de índole geológica que permitam a continuação
do exercício que tenho vindo a fazer. O sal do nosso saleiro, cujo uso não é
demais acautelar, produzido nas salinas à beira-mar, praticamente não difere do
sal-gema que se explora em Loulé e Matacães. Intercalado nas séries
sedimentares da base do Jurássico, este mineral testemunha um tempo, há cerca
de 200 milhões de anos, em que a Eurásia ainda estava unida às Américas e se
começou a esboçar o que é hoje a parte norte do Oceano Atlântico. O perfumado
cozido que se faz nas caldeiras das Furnas, em S. Miguel, num ambiente marcado
pelos odores do gás sulfídrico das fumarolas locais, só é possível graças à
actividade vulcânica ainda existente nas ilhas açorianas e à energia geotérmica
com ela relacionada, dois temas indesligáveis da dinâmica interna do globo
terrestre, hoje bem explanada na Teoria da Tectónica de Placas. Saberes acerca
de rochas e sabores com elas relacionáveis, só se forem os possíveis de abordar
a propósito dos tão apreciados “nacos na pedra”, posto que há rochas boas para
o efeito, como é o caso do basalto, que suporta bem a elevada temperatura a que
tem de ser aquecido, outras más, como são o mármore e o calcário, que se
decompõem facilmente pelo calor, e outras assim-assim, com é o vulgaríssimo
granito. Mas se se optasse por dissertar em torno do gás natural, que
consumimos no fogão, ou das matérias-primas com que se fabricam os barros,
faianças e porcelanas, os vidros, os
tachos e panelas de ferro, de cobre ou de alumínio, os talheres, desde os
vulgaríssimos “inox” aos christofle ou aos de prata, os estanhos, os cristais e
todos objectos das cozinhas e das mesas de pobres a ricos, ter-se-iam de referir
os combustíveis fósseis, a calcopirite, a cassiterite, o quartzo, o caulino e
outras argilas, o bauxito e um nunca mais acabar de minerais e rochas.
Galopim de Carvalho