quinta-feira, 19 de junho de 2014

DA PRÉ-HISTÓRIA PARA A CIÊNCIA MODERNA (3)


As regularidades anteriores inevitavelmente terão desenvolvido alguma actividade de natureza simbólica que as exprime quer com os seus benefícios quer com as suas ansiedades. E, naturalmente, a repetição deste simbolismo vai desencadear certamente uma actividade ritual que parece encontrar expressão nos recintos (cromeleques), circulares ou em forma de ferradura, que nessa época também foram construídos.
Não temos escritos que nos descrevam esses eventuais rituais, e muito menos os saltos epistemológicos que a mente humana poderá ter dado nessa altura. Porém se a necessidade de enterramento dos mortos fez parte desta premência simbólica e ritual, não nos admiraremos de verificar que a grande maioria das antas se encontre implantada com a sua abertura, e muitas vezes com o corredor que lhe dá acesso, virados a nascente. Mas, se designarmos por “nascente” aquela porção do horizonte onde o sol nasce, entre o seu limite mais a norte (solstício de verão) e o seu limite mais a sul (solstício de inverno) o que é interessante é que se constata que a referida orientação das antas não se distribui uniformemente entre esses dois limites, mas antes mostra uma clara preferência por uma direcção intermédia, grosso-modo a meia distância entre esses dois limites*, próximo do que hoje associamos com os equinócios, em particular com o início da Primavera. Claro que há sempre um pequeno número de exemplos de antas que não seguem esta regra mas estimamos que não excedem 5% do total.
Certamente que os homens e mulheres do período megalítico não eram astrónomos mas, no seu convívio diário com esse mundo inatingível - embora presente porque observável, e real porque interferia no seu próprio território - tiveram oportunidade de o observar detalhadamente e sensibilizar-se para os seus ritmos e suas consequências. Muito naturalmente esta observação empírica dos astros, esta forma rudimentar de astronomia, em particular do sol e da lua, neste e noutros locais, e também noutras civilizações, ao longo de alguns milénios, terá sido importante para o aparecimento de ideias expressas de forma simbólica nas escritas antigas. Na Babilónia aparecem, como simples registos de dados e de observações, incluindo repetições de ocorrências que vão permitir previsões (por ex. de eclipses), e abrir assim o caminho para a estruturação de um corpo de conhecimento que virá a dar o que hoje chamamos Astronomia. Evidência dessa evolução vamos encontrar nos gregos que já no primeiro milénio AC detinham elaborados conceitos astronómicos que lhes permitiam por ex. estimar o raio da Terra. A partir daí a História conta-nos como se evoluiu até à Astronomia de hoje. Mas o registo histórico fala-nos de uma continuidade de rituais associados às celebrações do início da primavera.
*in  Revista Portuguesa de Arqueologia, vol.10, nº 2, 2007, p35-74


                                     C. Marciano da Silva