No
passado mês de Julho, os portugueses foram bombardeados com a visita do
Presidente da República à Reserva Natural das Ilhas Selvagens, criada em 1971.
Estas muito nossas pontuações rochosas emergentes das águas do Atlântico, a
cerca de 160 km a norte das Canárias, têm sido, de há muito, alvo da cobiça dos
“nuestros hermanos y vecinos”, nesta Europa a 27, onde a solidariedade é
palavra quase esquecida. É um conjunto de três pequenas ilhas ou ilhéus
rodeados de baixios que, para além do seu muito interesse nos domínios da bio e
da geodiversidade, fazem aumentar consideravelmente a Zona Económica Exclusiva
de Portugal.
Durante
a curtíssima estadia do Presidente da República nesta parcela do território
pátrio, falou-se da Estratégia Nacional para o Mar, falou-se de Mário Soares e
Jorge Sampaio, os dois presidentes que já ali se deslocaram em manifestações de
soberania, e ali permaneceram apenas umas horas, e que foi o actual Chefe de
Estado que, reafirmando a portugalidade da dita parcela, ali pernoitou; “uma noite
tranquila”, no dizer do próprio, em contraste com a “noite mal dormida” a bordo
da fragata Vasco da Gama. Falou-se do ROV, o veículo de observação remota,
capaz de mergulhar até aos 6000m, nas profundezas oceânicas, falou-se da casa
dos vigilantes e da única casa particular, ali construída em finais dos anos 60
do século passado, propriedade do médico e ornitólogo de origem britânica,
Francis Zino, e falou-se muito de cagarras e um pouco menos das outras aves ali
residentes.
Entretanto,
em Lisboa, prosseguiam as conversações entre as delegações do PSD, do PS e do
CDS-PP, dizia-se que, com vista ao “compromisso de salvação nacional” proposto,
dias antes, pelo ilustre visitante do minúsculo arquipélago.
Nesta visita, ninguém, nem o director
do Parque Natural da Madeira (como era seu dever e da sua competência),
explicou ao Professor, aos distintos acompanhantes e aos portugueses a natureza
e a história geológica do local. Com alguma ligação a esse domínio do saber
foram, contudo, ali proferidos dois temos: pedregulho, pela boca do Professor
Cavaco Silva, ao aludir às irregularidades da vereda de acesso ao planalto, e
ravina, pela voz do Dr. Alberto Jardim, no mesmo percurso, numa expressão,
aliás, incorrecta, pois o que há ali é um escarpado ou, se quisermos, uma
arriba. Ravina é um francesismo desnecessário, obtido por tradução de ravin,
cujo significado é barranco.
Vista aérea da Selvagem Grande (in www.panoramio.com).
As
Selvagens são a parte visível de um importante aparelho vulcânico edificado a
partir do substrato oceânico (com 135 milhões de anos), a uma profundidade de
3000 a 4000 metros e quase completamente arrasado pela erosão na sua parte
emersa. A Selvagem Grande, a maior destas emergências, corresponde ao que resta
de um cone vulcânico no extremo nordeste de um alinhamento de orientação NE-SW,
marcado pela isóbata dos 1000 m, cujo extremo SW corresponde ao outro cone do
mesmo aparelho, testemunhado pela Selvagem Pequena e pelos ilhéus vizinhos.
No
essencial e em termos muito gerais, a Selvagem Grande, com cerca de 5 km2,
exibe uma superfície planáltica, a cerca de 100 m de altitude, terminada
abruptamente sobre o mar, com arribas de 70 a 90 m de escarpado. Esta
superfície, sub-horizontal e muito regular, é o resultado de erosão, por
abrasão marinha, do relevo vulcânico primitivo, predominantemente construído
por fonolito (rocha extrusiva rica de feldspatóides, equivalente vulcânica do
sienito nefelínico, como o que temos na Serra de Monchique) durante o período
Oligocénico, cuja idade isotópica foi avaliada entre 24 e 27 milhões de anos.
Sobre
esta superfície, então submersa a muito escassa profundidade, formando um
banco, depositou-se uma sequência de camadas sedimentares, com 5 a 10 m de
espessura, com um conglomerado de cimento calcário, na base, a que se seguem
níveis arenosos calcários com abundantes fósseis marinhos atribuídos ao
Miocénico (Tortoniano inferior ou Serravaliano).
Esta
superfície acabou por de elevar uma centena de metros, razão de ser da sua
actual situação planáltica. Acima dela sobressaem o Pico da Atalaia (163m), o
Pico do Tornozelo (137m) e o Cabeço do Inferno (108m), elevações
correspondentes ao que resta de três cones edificados por actividade vulcânica
mais recente, testemunhada por piroclastos e escoadas de lavas basálticas (cujo
primeiro derrame sobre a camada sedimentar fossilífera data de há cerca de 11,5
milhões de anos), num conjunto que se prolonga pelo Pliocénico e, talvez, pelo
Quaternário antigo, que cobre o topo da sequência sedimentar que, assim, apenas
é visível na periferia da ilha, no topo da arriba, entre os 80 e os 100 m de
altitude.
Parte
do planalto está atapetado por areias calcárias organogénicas, para ali
transportadas eolicamente, oriundas de um litoral arenoso entretanto
desaparecido.
Como recursos hídricos,
existem na ilha apenas três fontes de fraco débito e apenas em parte do ano:
Fonte das Ovelhas, Fonte Salgada e Fonte das Galinhas, pelo que o abastecimento
de água se faz com recurso a duas cisternas, a Velha, no centro da ilha, e a
Nova, a SW do pico da Atalaia.
Galopim de Carvalho